Protagonismo e representatividade importam!

Protagonismo e representatividade importam!

Por Fábio Cordeiro
Presidente da ONDA-Autismo


Uma afirmação forte, tema da nossa campanha na ONDA-Autismo no mês do Orgulho Autista, na qual nos são colocados dois pontos de extrema importância para qualquer pessoa. Porém, não são todas as pessoas que têm a oportunidade de serem protagonistas da própria história e de se representarem. E justamente, para essas pessoas, talvez esses dois pontos se façam ainda mais necessários.

Para compreender melhor tudo isso, é preciso entender o que é cada um desses quesitos a fim de que possamos perceber o lugar de cada indivíduo nessa relação.

Quando falamos em lugar, um dos conceitos mais importantes é o do lugar de fala, que, além do que o próprio termo sugere, vai muito mais profundo do que apenas o falar e o de quem fala. Tem a ver também com o ouvir, com o existir, o se compreender e compreender o outro para que cada ator pratique o que lhe cabe em seu papel.

Com isso, logo de início podemos desfazer o primeiro equívoco que ronda esse conceito. Saibam que está errado dizer que alguém não possui lugar de fala para falar sobre algo. Essa talvez seja a maior confusão que, por uma compreensão equivocada, permeia tal conceito.

Na internet, nas redes sociais, é muito comum que vejamos frases como: "você não tem lugar de fala" ou "você não pode falar sobre isso porque não é seu lugar de fala".

E talvez por interpretações errôneas como essas, criou-se essa impressão de que alguém possa estar tão de fora de algo que nem tem o direito de se expressar sobre o assunto. E aqui já podemos começar a entender o problema disso. O conceito do lugar de fala visa incluir, então como alguém pode estar de fora?

Então, podemos concluir que podemos falar sobre tudo da maneira que bem entendermos? A resposta é sim, todos podem falar sobre tudo da maneira que bem entendem. E aqui, é muito importante entender, pois esse é o que realmente significa o lugar de fala, que o problema não está em falar sobre algo, em se posicionar sobre qualquer coisa. A questão é falar sobre algo, sabendo qual é o papel que exerço naquele contexto. Esse é o meu lugar de falar sobre algo.

Se o assunto for paternidade, por exemplo… Eu, que sou pai, posso falar sobre isso. Porém, é fácil perceber que uma mãe também pode falar de paternidade. Um cidadão que não tem filhos pode falar sobre o assunto e até um filho ou qualquer outra pessoa pode.

A diferença é de onde cada um fala. Então, eu posso dizer como me sinto sendo pai. A mãe pode falar de como é ter o pai por perto na criação dos filhos. Alguém que não tenha filhos, ainda assim, pode expressar como uma paternidade presente ou ausente vai impactar nos vários aspectos da vida de uma criança e da, mesma maneira, uma filha pode contar como é importante um pai na vida dela.

Percebam que, apesar de o assunto ser o mesmo, apenas um pai pode dizer como é ser pai. Nenhum dos outros atores ali podem falar desse lugar, de pai, de fala. Mas todos continuam tendo, cada um o seu lugar para falar sobre a paternidade, de dentro dos seus próprios lugares.

Parece simples de compreender, mas, quando o tema é mais polêmico, o conceito torna-se mais complexo e ocorrem as distorções. Apesar disso, quando entendemos o que de fato significa o nosso próprio lugar de fala, fica simples de perceber como falamos e de onde falamos.

Então, todos podem e devem falar sobre racismo, sobre homofobia, sobre capacitismo ou seja lá o que for. Uma pessoa branca falando de racismo, fala de um lugar de privilégio; ela própria nunca sofreu com o racismo, portanto não pode invalidá-lo ou menosprezá-lo, mas pode acatar que, apesar de ela própria nunca ter sido discriminada pela sua cor ou ter corrido risco de morte por isso, deve buscar um mundo no qual a aberração que é o racismo não exista, para que nenhum ser humano sofra com algo que ela própria não sofre.

E esse exemplo nos leva adiante no entendimento do conceito, quando chegamos ao lugar de escuta e compreensão. Se existe o lugar de fala, logo, existe o lugar de quem ouve e compreende, para que não se transponha o direito do outro de protagonizar e de se representar na sua própria história.

E aí voltamos ao nosso ponto principal: Protagonismo e Representatividade e o que isso tem a ver com o Orgulho Autista.

Poder se orgulhar de quem somos, nos representarmos e sermos os astros das nossas vidas são coisas que não vêm facilmente. O próprio orgulho sobre algo só tem razão de ser porque esse algo acontece com dificuldades.

Existir, enquanto pessoas autistas, não é fácil. Quisera eu que fosse, mas as barreiras na sociedade ainda são muitas. A própria condição traz muitas dificuldades, mas existir dessa maneira, que não podemos esquecer nunca, também é uma maneira legítima e natural de existir, merece, como todas as outras maneiras que abrigam a existência humana, respeito e auxílio no que for preciso.

Talvez seja difícil, para alguém que não é autista, entender o porquê de nos orgulharmos de quem somos da maneira que somos. Talvez seja difícil, para alguém que não é autista, entender e aceitar que podemos nos representar e assumir o papel de destaque nas nossas pretensões como seres que não são inferiores por sermos diferentes ou por termos mais dificuldades.

É totalmente compreensível essa dificuldade, para alguém que não é autista, pois esse alguém está vendo o Autismo de um lugar que, como explicado anteriormente, não é o de quem vive aquilo, apenas vê de fora. Pior ainda, vê de fora por uma visão capacitista que a estrutura da sociedade lhe traz e que encara a pessoa autista como incapaz ou inferior.

E aí se faz mais necessário ainda ouvir, acolher e compreender. Mesmo as pessoas que vivem o autismo, através de seus entes queridos, necessitam aguçar esse lugar de escuta e compreensão. Já pude, nesses meus anos trabalhando com inclusão de pessoas autistas, observar mães, pais e outros familiares que também questionam como alguém pode se orgulhar de algo que lhes traz tantas dificuldades e por vezes sofrimento.

Novamente, cada um precisa se colocar no seu devido lugar. Eu, como pessoa autista, não posso me colocar no lugar de uma mãe que sofre com e pelo seu filho. Não posso minimizar esse sofrimento apenas porque ele não é meu. Aqui, também pratico o meu lugar de escuta. Porém, é muito importante que entendamos que os sentimentos como mãe não eliminam os próprios sentimentos dos seus filhos. E aí é necessário ainda mais que essas mães, pais trabalhem para que seus filhos possam protagonizar suas vidas e se representarem. Nem que seja para que eles mesmos validem esses sofrimentos para que possam ser trabalhados a partir de suas próprias demandas.

Então, se um filho não fala, eu posso e devo falar por ele, usando meu lugar de privilégio, mas sempre buscando suprir as demandas dele, para que ele seja o protagonista. Posso temer por ele, mas nunca achar que ele próprio não possa se orgulhar de quem ele é, apesar de todas as dificuldades.